10 maio 2006

Impunidade.


Há muito que não escrevia um post no verdadeiro sentido da palavra... tenho contado umas aventuras, remetido para uns links de outros blogs... enfim, a falta de tempo tem sido sufocante.

De regresso por hoje, aqui vai...

Se há algo que realmente me incomoda e revolta, é ouvir (basta ouvir) o choro desesperado de uma criança (quando é aquele choro mimado dá-me vontade de lhe dar um safanão!), ou um cão a ganir (assim como ver tratar mal um cão). Porquê duas realidades tão dispares? Será que têm alguma equivalência em termos de importância?... Claramente não! No entanto, o que realmente mexe comigo, é a impotência daqueles seres para se defenderem ou protegerem. E isso revolta-me; é impossível tornar-me indiferente. O abuso da fragilidade de um ser é para mim mais que repugnante... Sou capaz de partir o mundo a meio para acarinhar uma criança que chora desesperadamente; tal como para acarinhar um cão que está a ser maltratado (normalmente esta parte não é possível, porque ele foge... pelo que me resta “maltratar” os causadores do sofrimento do animal).

Lido muito mal com a dor, com o sofrimento, com o desespero... não com o meu! Desse trato eu bem... Mas com o das pessoas que gosto e com os desprotegidos... não consigo lidar. Conheço bem a dor física; pratico uma arte marcial há mais de 25 anos e estou habituado a suportá-la (daí não suportar senti-la nos outros). Não conheço o sofrimento nem o desespero, senão pontual, porque sempre tive uns pais fantásticos que me acarinharam em todas as situações (por isso não consigo conceber que alguém não tenha esta protecção afectiva).

Mas para meu espanto, o mundo é cada vez mais indiferente ao “sofrimento dos outros”. Ontem chegou a conhecimento do mundo (finalmente) que na Nigéria, um gigante do mundo farmacêutico, fez testes não autorizados com crianças e mulheres sem o conhecimento dos próprios. Mas o que é isto?! Agora há entidades que podem dispor da vida de seres humanos? E há seres humanos de 2.ª categoria? Porquê? Porque vivem em países do terceiro mundo? Porque têm uma vida já de si miserável? Ou simplesmente porque estavam doentes e naquele país nojento dificilmente se salvariam?... Já não lhes basta serem dominados por uma suposta democracia, em que um pequeno grupo de pessoas enriquece assustadoramente e explora impiedosamente milhões de pessoas, atirando-os para uma miséria cada vez mais profunda e indigna à condição humana?...

Aliás, esta é a realidade mundial... o nível de riqueza aumenta com o evoluir dos tempos, mas cada vez mais se concentra em menos pessoas e o nível de qualidade de vida, em termos médios, é também cada vez mais baixo (a nível mundial). E o melhor exemplo de todos é o do Vaticano: não só tem a maior fortuna do mundo, como cada vez mais a engorda e torna restrita a meia dúzia de católicos, que aceitam viver na hipocrisia de normas que os nossos dias se tornam cada vez mais desadequadas. Não sei se isto não é pior que as guerras de outrora... Não sei se isto não é pior que a escravatura... Não sei se isto não é pior que a Idade Média...

Li no jornal há 2 dias que dois rapazes foram assassinados por terem lançados uns “piropos” a duas raparigas. Foram dois casos isolados e separados, que por coincidência acabaram retratados no mesmo artigo de jornal. Não sei em que termos é que estes “piropos” foram ditos, nem a quem, nem em que contexto... Mas de certeza que não justificaram as 4 balas que um dos galanteadores recebeu, ou as 4 facadas no coração de que o outro foi vítima (curioso... até o número das insistentes agressões coincide...).

Em ambos os casos houve intenção de matar! Sem dúvida. Será que uma frase dita a uma mulher, por muito ofensiva que até possa ter sido (e não estou a dizer que foi... não sei...), justifica um acto bárbaro de tal gravidade? A necessidade de afirmação masculina, quanto à suposta “propriedade feminina” seria assim tão crítica? Nem sei se eventualmente as donzelas elogiadas seriam casadas... Também não sei se os supostos ofendidos “proprietários” eram maridos, namorados, amantes, chulos... Muito menos sei se haveria algum relacionamento entre os 3 personagens, que em ambos os casos, se reuniram em tão infeliz e trágico triangulo... São pormenores sórdidos sem qualquer interesse para mim...

Como se sentirá o assassino neste momento: “...matei-o e fugi! Que ganda homem que eu sou! E tu mulher, nem experimentes olhar para algum homem, senão morre também! E ai de vocês que olhem para a minha mulher...”. Isto é claro, à noite, à mesa do café lá no bairro, depois de umas boas cervejolas para comemorar tão heróico acto de virilidade.

E a mulher elogiada? Estará orgulhosa do acto do seu companheiro? Terá apoiado a sua reacção? Ou pelo contrário, está dominada pela angústia dos remorsos por sequer imaginar, que de alguma forma e ainda que inconscientemente, pode ter contribuído para aquele acto de brutalidade?

O ponto comum destas histórias chama-se “impunidade”. Cada vez mais a impunidade reina... quer para o que mata, quer para o que explora, quer para o que é indiferente aquilo que não podia ser. Parece-me um fenómeno crescente... senão, reparem no que Eça de Queirós escreveu em 1871 (in 1.º número d’ As Farpas):

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida .
Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: o país está perdido!»

Acham que sou um pessimista?! De forma alguma! E quem me conhece sabe bem que não... antes pelo contrário, cada dia que passa é melhor que o anterior, e cada vez mais faz sentido ouvir “A vida faz-me bem” da BSO dos “Morangos com Açúcar”...

Sérgio

6 comentários:

Filipe Carmo disse...

Excelente Post!!!
Muito para comentar hoje...

A sentimento de impotência de quando por alguém queremos fazer algo e nada se poder fazer, é do mais violento que há... é a pior dor que qualquer um pode sentir...
Seja pelo cão atropelado ou mal tratada, ou pela criança que chora com dores ou porque lhe "roubaram o balão".

Quanto às farmacêuticas, nada me espanta. Cá em Portugal, sabem especificamente o que cada médico prescreve... para os fins que todos sabemos!

O Vaticano... não sou crente mas respeito as pessoas crentes... não respeito a Igreja/Vaticano como instituição, visto não merecer tal... Com tal fortuna, poderia preocupar-se era em tratar de problemas cruciais no mundo, como a fome, educação, saúde... em vez de estar preocupada se as pessoas usam ou não preservativos!

Quer se queira, quer não, por muito que a nossa retrógrada sociedade tenha evoluído, o português continua a levar ao extremo a expressão "a minha mulher"! É minha! Minha posse, meu objecto! Ninguém pode sequer olhar! Tem de ser uma espécie de santa!
Ao que aprendi com a vida, "quanto mais moralista a pessoa é, mais tem a esconder". Daí que muitos destes homens bebem, traem, usam â violência com outros e/ou com as suas mulheres, etc.
Os portugueses continuam a acreditar de tal modo nesta posse que em caso de traição ou suposta/tentativa de traição,partem imediatamente para a violência. Seja direccionada só para o 3º interveniente, seja para os dois.

Muitos dos homens que lêem esta notícia, acham muito bem, e ainda dizem que fariam pior. Não tenham dúvidas.
Talvez tal panorama não aconteça de forma tão grave numa classe mais média/elevada citadina, mas no lado do interior do país, e arredores de cidades, não tenham dúvidas!
Daí, por muito doloroso que seja ler esta notícia, não me surpreende muito.

Por fim, confesso não ser conhecedor das obras de Eça de Queirós.
Mas já não é a primeira vez que leio excertos destas e surpreendo-me!
É incrível o quanto estes textos, como este, estão tão actualizados em relação à nossa sociedade dos dias de hoje... quer no que toca aos cidadãos, quer como se olha ao papel do estado!

Parabéns pelo excelente Post!

Anónimo disse...

Há-des dizer-me o truque para tratar bem do nosso sofrimento ou da nossa dor, nunca soube lidar mto bem com este tipo de sentimentos quer sejam relacionados comigo ou com terceiros, fica sempre aquela sensação de impotência e de revolta...temos sentimentos engrandecidos mas sentimo-nos diminuídos por pouco ou nada podermos fazer mediante essas "impunidades" tão bem descritas, parabéns pelo Post Sérgio, beijinhos

Raízes disse...

Estou como o "Blogmaster", ...muito para comentar hoje.

Sérgio,

A primeira coisa que me veio à cabeça logo no ínicio deste post foi a do "Ser forte para ser útil", não o ser forte fisicamente mais principalmente psiquicamente e espiritualmente.

Havia realmente muito a comentar, mas a falta de tempo também por estes lados é um problema.

Fica contudo o optimismo e a força de todos os que manifestam a sua opinião e que mesmo que de forma invisivel no seu dia a dia vão dando o exemplo de que é possivel ser diferente e faz todo o sentido ser diferente. Nem que a "vaca tussa" já diziam os antigos, havemos de desistir.

MTOCAS disse...

Bem amigo, não tenho palavras para comentar o que escreveste !!
apenas que concordo com o Eça, estamos perdidos mas vale-nos o optimismo para o dia á dia!
Parabéns pelo post *****

beijo
marta

psac74 disse...

Este post está, simplesmente, excelente!

Infelizmente, a sociedade, apesar de "civilizada", está cada vez mais animalesca! Os mais frágeis, cada vez, são mais frágeis e os poderosos, cada vez, são menos e mais poderosos... Já não se trata apenas da fragilidade de uma criança ou de um cão!

Gisela FFale disse...

sem dúvida um excelente post, ainda que com um atraso de 2 anos e meio de leitura, sinto-o perfeitamente actual...bem como as palavras do Eça há mais de 100 anos!!!ups;)

a BSO dos Morangos com Açucar não conheço, mas segura que um dia destes a partilharás...“A vida faz-me bem”...uns dias melhores que outros, mas também aí está o seu encanto...a capacidade que tem de nos surpreender!;)

mas curti mesmo foi a fotografia...espero que os pais tenham sido devidamente punidos...;)