...no Verão passado, que por muito pouco que tenham sido, cortaram o cansaço, a rotina e trouxeram novas histórias para contar. Nem que fosse só pela viagem... já tinha valido a pena!
Assim, prometi a mim mesmo, que não ia trabalhar uma quinta e uma sexta. Empresa nova é mesmo assim, mas lá consegui com a equipa resolver isto... afinal, ninguém é insubstituivel.
Quinta de manhã acordei quando acordei... tinha pensado sair às 10 da manhã, mas já não era possível... Saí às 11 e reconheço que estava um dia de praia tão bom, que já não me apetecia sair. Despedi-me do pessoal lá de casa, amarrei a mochila à moto com a aranha e saí... A ajudar à pouco vontade momentãnea em sair, a cara de drama da minha mãe, habitual sempre que eu saiu da moto, quase num choramingar a perguntar-me se eu não quero levar antes o carro dela...
Arranquei com a promessa de dar notícias quando chegasse a Miranda do Douro e a vontade de rasgar a estrada imediatamente ficou ao rubro. Primeira paragem na área de serviço de Mindelo para ajustar a pressão dos pneus. Encontro dois motards espanhois, montados em costums. Convidei-os a seguirem viagem comigo. Com um sorriso respondem-me que eu tenho cara de quem anda muito depressa! Afinal, iam para Sul, enquanto eu ia para o interior. Com o mapa dei-lhes algumas explicações e sugestões para tornar a viagem deles mais colorida. Despedimo-nos com os votos de boa viagem e boas férias.
Novamente em andamento na A28 sigo até ao desvio para o aeroporto. Sentia a estranha sensação de perder a mochila; constantemente precisava de lhe tocar com a mão para saber se ali estava e suprir a ausencia do peso nas costas. A sensação de liberdade era boa... as costas soltas e leves... mas causava-me algum desconforto.
Continuo em auto-estrada, mas o sabor já era diferente... ali, na A24, não passava todos os dias. Mal acabo de entrar, leio num placar electrónico “Verão de 2008, 86 mortes...”, mas o que é que eu tenho a ver com isso?! Porque é que tenho de ser massacrado com as desgraças dos outros?! A sensação de revolta invade-me... esta pre-disposição para a desgraça e tragédia irrita-me profundamente. Compenso com o prazer de subir o velocimentro uns bons kms/h mais...
Por ali segui, passando a Maia, Paços de Ferreira, até sair para o que resta da A4. A ligação destas duas auto-estradas é... nem sei definir... Já no célebre IP4, a estrada piora, as limitações de velocidade levam-me a prestar mais atenção às bermas da estrada e todo o tipo de recantos, em vez de à estrada propriamente dita. Mesmo assim, o prazer de condução aumentou.
A temperatura desceu e tornou-se mais agradável para quem vai de moto. A Scarlet comporta-se de forma irrepreensível em ritmo de passeio, permitindo viajar com uma suavidade única, dando lugar ao conforto para poder observar mais a paisagem do que a estrada. A falta do peso da mochila nas costas continua a causar-me estranheza... é uma sensação de aventura, desafio e mudança caracterizada pelo arrepio que nos ocorre quando, por momentos, parece que nos esquecemos de algo em casa. Novos paineis com a mesma mensagem... que raio, o que é que eu tenho a ver com isso?! Essa estupidez de que andar depressa é perigoso é para gente tacanha e desprovida de cérebro! Deixem-me andar á vontade! Passar os 250 kms/h, romper as laterais dos pneus, raspar os avisadores no chão! Não ponho ninguém em perigo, ao contrário de todos aqueles que a 120 kms/h vão distraídos com o telefone, GPS, computador de bordo, leitor de DVD, ar condicionado, rádio... ou a fumar um cigarro!
Avanço no IP4 e a paisagem torna-se cada vez mais interessante; a estrada, deliciosa; o cheiro de Verão e férias varia e delicia-me a cada quilómetro. Paro na área de serviço de Mirandela, a única do IP4... Vou tomar um café e comer alguma coisa... já lá vai uma hora e pouco de viagem. A mochila lá está intacta, amarrada pela aranha ao banco. Deixo a mochila na moto... com algum receio, não maior que a preguiça de a tirar de lá. Ninguém deve fazer nada. Dou um telefonema à Paula que me espera em Miranda do Douro, que me volta a explicar o caminho por Espanha, onde a estrada é melhor. No regresso à moto, a Scarlet tinha colhido mais um admirador... é sempre isto! Pergunta-me que tal é uma Triumph, quanto é que dá, quanto é que gasta, quantos cavalos tem, se a moto se porta bem... Acaba por confessar que tem um XJ600, mas que anda pouco com ela, porque foi operado, e os problemas que teve com a ferrugem nos escapes e a garantia da Yamaha. Esteve na concentração de Bragança (de carro) e pergunta-me se vou para lá. Explico que não sou grande adepto de concentrações e que vou até Miranda do Douro. Olho para o relógio e finjo-me apressado... lá consigo desgrudar de uma conversa que ia demorar o dia todo (espero que o pobre homem não leia esta história!).
Regresso à estrada que se mostra cada vez mais interessante. Apenas numa determinada secção apanho um vento gelado, que o meu casaco de Verão me transmite na perfeição. Por momentos recordo os dias de Inverno. Continuo a estranhar o excesso de liberdade nas minhas costas. A mochila apesar de amarrada pela aranha, desliza no banco, quer nas acelerações, quer nas travagens.
O IP4 é uma estrada fascinante. Este fascinio apenas foi interrompido numa subida em que um camião a 20 kms/h, obrigou-me a engrenar uma primeira e espreitar até poder ultrapassá-lo.
Já bem mais à frente, reparo que a ligação a Espanha ainda não é assegurada pelo viaduto, que daria continuidade à “via rápida” em que circulo. Para mim são boas notícias! Tive a oportunidade de reviver a estrada para Quintanilha, que fiz agora pela primeira vez de moto! É de facto um delírio! Uma estrada estreita de duas faixas, rodeada de verde denso e sombrio, com óptimo asfalto. Curvas sensacionais! Relembro ainda as vezes que ali passei em miúdo com o meu Pai ao volante. Relembro ainda as histórias do meu avô, Chefe de Alfândega antes de 1974, e que longos turnos fez naquela tão mítica fronteira. Infelizmente a distância era curta, pelo que rapidamente e com alguma nostalgia passo pelo posto fronteiriço e entro numa estrada distinta, mas muito boa, em Espanha.
Esta estrada, muito bem conservada, permite rodar depressa, fazer curvas rápidas e sempre com grandes margens de segurança e visibilidade. Mais à frente, uma bomba de gasolina. Aproveito para reabastecer, pois para trás já ficaram mais de 300 kms. O homem da bomba de gasolina é Português, ao que se segue conversa sobre gasolina mais barata e sobre a moto. Lindíssima diz ele! Mas prefere a Daytona (tem uma!).
Poucos quilómetros à frente encontro à direita o desvio para Portugal. Entro numa estrada estreita que atravessa o Parque Natural de Miranda do Douro; atravessa também algumas aldeias. Mas o mais caricato é que o referido Parque varia literalmente da água para o vinho! Ou seja, tem uma zona de vegetação verde e densa, que rapidamente se transforma numa “planície alentejana”, seca e árida.
Chegado a Miranda do Douro, rapidamente encontrei o hotel. Estacionei a moto em frente à porta, onde ficou até ao outro dia de manhã. Fiz o check in e fui ao quarto trocar de roupa e refrescar-me. Logo a seguir chegava a Paula para me levar a almoçar. Distraímo-nos com as horas ao almoço e acabamos por perder a possibilidade de fazer um passeio de barco... Felizmente, Miranda do Douro é uma cidade muito bonita, onde tem sido feito um esforço grande de reconstrução e remodelação. É muito agradável passear a pé e conhecer os mais diversos recantos na zona histórica. E como o que é bom passa depressa, rapidamente estávamos a jantar num restaurante divinal e a seguir a conhecer a “noite” de Miranda do Douro. Apesar disso, deitei-me cedo. No dia a seguir, além do regresso, esperava-me um momento inédito!
Acordei pouco depois das nove... preguicei um bom bocado mais, tomei um banho calmamente e fui ao pequeno-almoço! A minha refeição favorita, além da fome já apertar! Check-out e prender a mochila à moto. Devo ter arrancado pouco depois das 11h00. A paisagem fantástica do parque natural de Miranda do Douro repete-se... O asfalto de péssima qualidade poe-me à prova quando tenho de travar repentinamente por causa de um cão que atravessa a estrada deserta... Não vi o cão... não sei se por ali andava e eu estava distraído com a paisagem, ou se estava escondido e saltou do nada para o meio da estrada... Felizmente não caí, nem atropelei o cão... Entro em Espanha novamente e volto a parar na mesma bomba de gasolina. De facto, a gasolina é muito mais barata e por pouca que caiba no depósito, vale sempre a pena. Aproveito para tomar um café (o do hotel era para esquecer...) e para comprar uma água, que o calor aperta!
Ao meio dia já estava no Aeródromo de Bragança. Parei a moto debaixo de um sol abrasador. Logo a seguir percebi que um dos monitores de vôo já lá estava. Informou-me que as térmicas estavam a começar a levantar e que o melhor seria irmos comer alguma coisa, para depois voar. Assim fiz e às 14h00 já estava dentro do hangar, onde co-habitavam vários planadores...
Olhar para aqueles aparelhos é quase um privilégio... poder observar como uma estrutura tão frágil nos consegue suster no ar por tanto tempo. Mais, conseguimos ganhar altitude sem motor!
Alguns destes planadores são lindíssimos... obras de engenharia a todos os níveis, mas também de design... impressionantes!
Finalmente percebi que ia voar numa sucata de metal (e não de fibra como os outros que lá estavam... lindos!) com 40 anos e de cor cinzenta. Mesmo assim era extremamente leve. Empurrei-o com o monitor do hangar até ao início da pista... demoramos para aí um quarto de hora! Eu já soava em bica... ainda por cima com calças e sapatilhas de andar de moto...
Depois de muitas informações e recomendações sobre temas sempre úteis, como por exemplo, como soltar o vidro do cockpit para nos ejectarmos; como saltar de páraquedas, etc., fomos os últimos a descolar da pista. É incrivel como um planador descola tão facilmente... A avioneta mal tinha arrancado e já nós estávamos a um metro do solo. Fomos rebucados até aos 600m de altitude, altura em que o monitor sentiu uma térmica e largou o cabo. A coisa não correu muito bem... apanhámos um poço de ar e num abrir e fechar de olhos já estávamos nos 300m, com o monitor a pedir-me desculpa pelo passeio ter sido tão curto (isto entre muitos palavrões). A esta altitude o piloto é obrigado a fazer-se à pista, por questões de segurança... até porque em Bragança não há outro local onde se possa aterrar... Este homem já com os seus 60 anos mostrou o que valia, e conseguiu-se agarrar à ponta de uma térmica muito estreita já a 250m de altitude. Entre voltas muito apertadas lá fomos lentamente subindo. Afinal, o vôo parecia que não estava perdido...
A certa altura transmite-me que já estávamos novamente nos 600m... “não estamos a perder nem a ganhar” dizia ele! Ao que eu respondi: “...óptimo! Então alargue as voltas um bocadito, porque já tenho o estômago todo embrulhado!”. Ele riu-se, mandou-me beber água e olhar para o horizonte. Continuamos a subir. Agora que os movimentos dos aparelhos eram mais suaves, pude apreciar com calma a serenidade da paisagem... De facto, o mundo parece ter sido feito para o vermos de cima... É fantástico! Os estupores dos pássaros são uns sortudos!
Assim foi até aos 1.200m; a esta altitude comecei a ficar zonzo... mas zonzo a sério. O piloto explicou-me que não era enjôo, mas sim o ouvido interno que não estava habituado a compensar em altitude; “...vai-se lá com o treino e com o hábito. Ao início todos estranhamos...” dizia ele. Como a coisa estava mesmo complicada, ele optou por me passar os comandos da aéronave. Segundo ele, ia ficar bom logo! E assim foi! De facto, acabaram-se as tonturas... E começou o êxtase total!
É realmente emocionante guiar aquilo! A manche faz 4 movimentos: inclina o avião para a esquerda e direita, e afunda ou levanta o nariz. Depois temos 2 pedais, que são uma espécie (de magazine!) de leme, ou seja, fazem o planador virar para a direita ou esquerda. Para curvar, o planador necessita de um equilíbrio de leme e de inclinação. Um tanto como nas motos, onde para curvar usamos um misto de inclinação e volante. Se inclinarmos demasiado o avião ou usarmos pouco leme, vamos perder velocidade e altitude: o avião cai para dentro da curva. Se usarmos muito leme e pouco inclinação vai deslizar para fora da curva (como se nos despistássemos), perdendo posteriormente velocidade e altitude.
Há muitos manómetros no painel do cockpit onde se lê muita informação: altitude, graus, alinhamento do aparelho, bússola, etc.. Na verdade, a informação mais útil vem de um pequeno fio colado no vidro do cockpit, por uma fita-cola. Se o fio permanecer a direito, é porque estamos a voar correctamente; ou seja, curvamos bem, equilibramos bem a inclinação do avião com o leme. Este fio deve estar a direito independentemente de irmos em frente ou a curvar. Se incorrermos em excesso de inclinação, o fio vai pender para o lado de fora da curva (estamos a cair). Se usarmos demasiado leme e pouca inclinação, o fio vai pender para o lado de dentro (estamos a derrapar no ar). É incrível como as coisas simples nos podem ajudar tanto... O movimento do fio é provocado pelo vento, que nos permite fazer esta leitura tão útil e tão simples. Até um massarico como eu, que nunca tinha guiado uma aeronave, consegue apanhar o jeito da coisa ao final de 10 minutos! O problema é que em 10 minutos, caímos dos 1.200m para os 400m...
Por sugestão do piloto, optamos por nos dirigirmos à pista e aterrar. Já estávamos no ar à 50 minutos... ora, um baptismo de vôo naquelas condições não deve exceder os 30 minutos. É violento; o avião deu inúmeros coices entre térmicas e poços de ar... e os massaricos ressentem-se... dizia ele...
É incrível como um avião daqueles aterra facilmente... não usamos mais de 50m de pista! Devemos ter pousado nos primeiros 3m e o avião abrandou rapidamente. Só quando saí do planador é que percebi o porquê de não ser aconselhável vôos grandes para massaricos. De facto, voei mais de uma hora! Mas agora parecia que o chão não estava quieto... Só pensava agora em como levar a Scarlet até ao Porto! Ainda por cima, tinha de estar em casa antes das 8, porque um amigo fazia anos e tinha combinado levar a família lá para casa para comemorar!
Despedi-me do monitor, agradeci o passeio e toda a atenção que teve comigo. Ficou a promessa de um regresso... a adrenalina é inesquecível! Arranquei devarinho e parei num café para tomar uma coca-cola com limão: cafeína precisa-se... estava mole de toda aquela trepidação (parecia que o céu era uma estrada de parelelo e o planador um kart); por outro lado, servia também para cortar alguma náusea ainda presente.
Regressei ao IP4 e guiei tranquilamente. Estava uma tarde óptima para passear de moto. Não parei na área de serviço desta vez. Guiei seguido até bem mais à frente e parei numa zona de descanso antes de chegar a Vila Real.
Vejo um motard parado e paro ao lado dele. Eis que encontro um personagem VIP! Paulo Marta, da PSP de Vila do Conde e conhecido pelo envolvimento na iniciativa “A Estrada na Escola”. Falámos um bocadito... Ele vinha da concentração de Bragança. Estava orgulhoso da sua Fazer recém comprada... É muito bonita, diga-se de passagem. Lá nos fizemos à estrada! Ele ia para Vila do Conde e eu para Mindelo, portanto, o caminho era o mesmo... é claro que eu estava um tanto stressado com as horas... queria chegar cedo para tomar um banho antes do meu amigo chegar com a família. Claro também que o Paulo Marta é respeitador dos limites de velocidade... viemos a 130 kms/h e lá o forcei a chegar aos 150 numa altura ou outra... Parámos depois das portagens para nos despedirmos e seguimos para a A28. Na saída para Mindelo acenei-lhe um cumprimento de motard e fui para casa. Cheguei às 19h30, tomei o meu banho e depois fui brindado com um jantar fantástico: não me refiro só à comida, mas especialmente ao ambiente e às gargalhadas.
Sábado lá regressei ao trabalho... mas a vida de empresário é assim! Saudades do tempo em que trabalhava por conta de outrem... em que havia férias... feriados... fins-de-semana... vejam lá que até havia ordenado!
Sérgio